Filomena Sanches
Enfermeira Responsável do Serviço de Urgência Geral
1. Neste último ano, quais foram os principais desafios que enfrentou?
Foram vários, mas essencialmente passaram pela elevada pressão psicológica para responder às situações problemáticas decorrentes de uma pandemia a nível global e manter a equipa segura e ativa.
Este foi um desafio nunca experienciado por nenhum profissional de saúde, porque nos preparamos essencialmente para catástrofes ambientais ou acidentes com múltiplas vitimas, que exercem uma grande pressão sobre o Serviço de Urgência mas são limitadas no tempo. Ninguém estava preparado para uma pandemia epidemiológica.
O desconhecido ultrapassava o conhecimento científico na 1º fase pandémica. Foi uma aprendizagem intensa e sistemática. Por escassas orientações emanadas pela Direção-Geral da Saúde (DGS), antes do surgimento do 1º caso COVID-19 a nível nacional e no CHBM passei horas a analisar artigos existentes a nível internacional sobre o assunto, validando saberes com a Enfª Rosário Rodrigues, do GCL-PPCIRA (a quem agradeço a perseverança e paciência), antes da constituição do grupo de trabalho do Plano de Contingência. Lembro-me do dia e hora em que me "assustei francamente" ao pensar que os equipamentos de proteção individual e outros artigos clínicos do foro respiratório poderiam esgotar. A D. Rosa Oliveira (A quem enviei uma SMS durante um fim de semana) e a Drª Vanessa Paulino, garantiram-me que estávamos seguros e tínhamos stocks "grandes". Esta conversa aconteceu duas semanas antes do primeiro caso COVID-19 e a partir daí uma imensa capacidade de trabalho, de parceria e complementaridade, se desenvolveu entre o Aprovisionamento e o Serviço de Urgência, para que nada faltasse. A capacidade em inovar permitiu garantir condições de segurança aos profissionais e doentes.
Para quem coordena um serviço de Primeira Linha, a pressão foi elevada, impôs um planeamento de formação sistemática e contínua aos enfermeiros e assistentes operacionais, para implementação do plano de contingência que foi sendo dinâmico, face aos diversos fluxos de doentes e novas realidades.
A superação da exaustão foi o maior desafio para mim e toda a equipa multidisciplinar, particularmente os enfermeiros (e peço desculpa aos restantes profissionais, mas os enfermeiros desdobraram-se em múltiplas atividades, responsabilidades e elevadíssima carga de trabalho) principalmente durante a 3.ª vaga que foi bastante dramática e inesquecível. Ter de impor um nível de exigência elevado a uma equipa jovem, super exausta e por vezes desesperada por não saber como cuidar cada vez do maior número de doentes, face à contínua e crescente afluência de doentes e aumento da sua gravidade, foi doloroso, mas a equipa não desistiu e superou-se apesar das adversidades.
Transformámos o Serviço de Urgência em área provisória de internamento para doentes COVID-19, efetuámos inúmeros transportes inter-hospitalares de doentes críticos em suporte ventilatório invasivo para outras Unidade de Cuidados Intensivos (UCI) do país, recebemos doentes de tipologia de UCI não-COVID, enquanto mantínhamos internamento de doentes de diversas especialidades não COVID ou respiratórios.
Seria melhor perguntar quais os desafios que não tive. Mas a persistência, resiliência e superação estiveram sempre presentes.
2. Alguma vez sentiu medo (ou ainda sente) de ser infetado?
Achei que seria impossível não me infetar, mas felizmente não aconteceu. Nunca senti verdadeiramente medo de contrair a doença. O meu principal foco estava na missão: garantir as condições de segurança para os profissionais de saúde poderem cuidar com qualidade e dignidade o maior número de doentes, humanamente possível. O altruísmo e ética profissional, sobrepuseram-se ao medo ou bem-estar pessoal e creio ter sido este o sentir da maioria dos profissionais de saúde da equipa multidisciplinar do Serviço de Urgência.
3. No âmbito da atividade profissional que desenvolve, que aprendizagens retira desta nova realidade?
A maior aprendizagem, ou antes, a validação sobre o que considero ser a metodologia mais eficaz e eficiente para responder a situações de catástrofe ou pandemias, foi a imprescindibilidade do treino em equipa multidisciplinar.
Investir na formação diferenciada dos profissionais de todos os serviços em competências básicas e avançadas em medicina intensiva, mostrou-se necessária. Certamente inúmeras vezes foi equacionada ou planeada, mas por diversos fatores não foi possível concretizar em tempo útil.
A multidisciplinariedade é essencial, pois a equipa do Serviço de Urgência necessitou de ser alargada, face às exigências em cuidados de saúde. Os enfermeiros das Consultas Externas, constituíram a equipa de enfermeiros de urgência das especialidades, enfermeiros do Bloco Operatório e UCI integraram a equipa de enfermeiros da Unidade de Internamento Polivalente de Agudos (UIPA) quando as camas de UCI – não-COVID aí funcionavam.
Enfermeiros de vários serviços, nomeadamente Bloco Operatório, Psiquiatria, Urologia, Cirurgia, reforçaram a equipa do Serviço de Urgência na Sala de Observações (SO), face ao numero de doentes internados das várias especialidades não-COVID e para descanso e gozo de férias pelos enfermeiros do Serviço de Urgência.
Desta forma, os enfermeiros do Serviço de Urgência puderam prestar cuidados preferencialmente aos doentes do foro respiratório e COVID-19. Esta metodologia de gestão de recursos humanos de enfermagem funcionou e foi a chave do sucesso que importa ser mantida e melhorada, mas estendida a outros grupos profissionais. Não posso deixar de enaltecer o trabalho dos assistentes operacionais e das funcionárias de limpeza, do e de serviço à Urgência, porque, sem medos, abraçaram de forma exímia a tarefa árdua e de risco de procederem à limpeza e desinfeção indispensáveis à redução de surtos, demonstrando (se é que alguém tinha dúvidas), a sua imprescindibilidade no seio da equipa multidisciplinar do Serviço de Urgência.
4. O que mudou na relação com os doentes?
Não mudou muito, mantenho o mesmo humanismo e competência técnica, mas maior rigor na utilização do Equipamento de Proteção Individual, não só eu, porque foi uma boa prática que se disseminou e sistematizou, felizmente para segurança de todos. Talvez algo que não fazia antes com frequência, por trazer sempre cartão de identificação, foi a necessidade em me identificar perante o doente, porque os doentes e nós estamos com máscara. A expressão facial, foi substancialmente substituída, pela expressão do olhar. Aprendi a sorrir com os olhos. Sempre fui enfermeira que privilegiei o toque como forma de interação com o doente, mas agora ainda mais. Os doentes necessitam e nós também. Todos temos saudades de abraços e os doentes ainda mais por estarem privados dos seus familiares, o que tentamos diminuir com algumas videochamadas.
5. Em algum momento sentiu que o seu trabalho foi reconhecido por outros colegas ou pessoas externas à Instituição?
Sim, por cidadãos anónimos e outros profissionais, como "colegas da Proteção Civil" do Barreiro e Moita, os Srs. Presidentes das Câmaras Municipais do Barreiro e Moita, que manifestaram de variadíssimas formas, por palavras ou ações o seu agradecimento, a título mais pessoal ou extensível a toda a equipa multidisciplinar do Serviço de Urgência Geral (SUG).
Houve tantos sentimentos e trabalho árduo durante esta pandemia, essencialmente no início da primeira e durante a terceira vaga, que nunca esperei haver reconhecimento, por ser o meu dever e função como enfermeira. Mas para minha surpresa, tive sim: o meu superior hierárquico e funcional; vários colegas da equipa multidisciplinar o que foi emotivo, porque trabalhei para e com todos; mantive com a Dr.ª Elvira Camacho uma parceria e reconhecimento mútuo inestimável que vou guardar para sempre com carinho, a par com o trabalho em equipa com Diretora do SUG, Dr.ª Filomena Carneiro; mas os que mais me sensibilizaram foram os agradecimentos direcionados aos enfermeiros e assistentes operacionais, porque são os mais presentes durante as 24 horas.
Histórias há muitas, mas esta deixou-me particularmente sensibilizada: um casal de idosos, esteve durante um fim de semana a cozinhar bolos e bolachas variadas, a nível quase industrial e veio entregar ao Serviço de Urgência, para todos os profissionais de saúde. Como não podiam fazer mais do que respeitar o confinamento, sentiram uma vontade e alegria imensa em cozinhar para os profissionais de saúde, adoçando-lhes a alma e dando energia. Gostariam de ajudar de outra forma, cuidando de doentes, mas já que não podiam, faziam gosto em cuidar dos profissionais de saúde para estes terem força para cuidar dos doentes, porque um deles tinha estado internado no nosso serviço e reconhecia a dimensão do esforço e dedicação de todos. Não quiseram ser identificados. Fizeram-no de forma altruísta. Foi muito emotivo para a equipa, em plena 3.ª vaga e exaustão o reconhecimento e dedicação de um dos nossos doentes.
6. Passado um ano de vivência pandémica, sente mais orgulho na profissão que exerce?
Sempre tive muito orgulho na minha profissão, os desafios e exigências são cada vez maiores, mas não tenho dúvidas do papel essencial dos enfermeiros de urgência e de todos os enfermeiros de outras áreas, na sociedade e saúde dos cidadãos. O trabalho em equipa com o médico é no entanto essencial e imprescindível, são duas profissões complementares e uma não funciona em pleno sem a outra. Mas o meu grande orgulho é sem dúvida a equipa de enfermeiros do Serviço de Urgência e o trabalho desenvolvido neste ultimo ano de pandemia.
7. Numa palavra/frase, como descreve o primeiro ano da pandemia?
Dramático e longo!